sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Sobre a causa

Áfona de pai e mãe. Buscava apreender o inteligível. Quanto mais buscava, tudo o mais lhe escapava aos dedos, como água escorrendo da bica. Quando era criança gostava do mar, cresceu e, desistindo de enfrentar ondas, passou a olhar apenas o chão, mais nada. Olhar firme abaixo, pra baixo, no baixo. Tudo o que queria era ver um avião, mas o olhar mantinha-se atento aos paralelepípedos tortos da rua onde morava e desmoronava todos os dias às dez da noite, nem um minuto a mais, nem a menos. Um cansaço corrosivo consumia tudo, começando por seus pés.
Ouvia vozes. Sentia inveja de cada uma, de cada timbre. Preferia ouvir desde que nasceu, ouviu tanto que esqueceu de falar. Atrofiou as cordas vocais antes mesmo dos 6 anos de idade. Incrível esse vai e vem que é a vida de cúmplice. De tão cúmplice, tornou-se túmulo, baú ou algo congregado a qualquer dessas partes. Quem olhava, sentia pena. Não ela. Ela, não. Sentia que era a missão de vida: ouvir. Ouvia tanto que ouvia coisas. Coisas nunca são coisas boas de se ouvir, mas ela curtia cada coisa ouvida.
Escolheu psicologia, desistiu no terceiro período, primeiro seminário. Vida bruta essa de ter que falar sem querer. Insistia na mudice, mudez, muda qualquer coisa, mas não muda nada, na cruel realidade. Permanecia: quente e quieta.

(continua...)

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