quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Butantã

(para Lau)

Para ela, parecia óbvio o quanto e como aquela rua e aquela praça a esperavam, todas as vezes. E, para elas, pouco importava se ela vinha de carro, à pé, ou se tinha perdido o ponto e descera toda aquela curva sozinha de madrugada. Se estava feliz, se gritava por dentro de raiva, ou se a cada passo ficava mais aborrecida com o término tardio daquela reunião cheia de lenga-lenga que comera mais de duas horas de seu precioso e raríssimo tempo de sono. Por incrível que pareça, rua e praça ali permaneciam inabaláveis. Eis uma belíssima vantagem do concreto.
Quando ela parava no farol, pacientemente esperando por sua hora e vez de poder atravessar, punha-se a admirar os tantos ou poucos que corriam em torno da praça. Não havia muito tempo que os observava, apenas desde que se convenceu de que não ganharia o mundo - e que, talvez, até o perderia mais cedo, apesar de não parecer se importar - se corresse entre os carros para alcançar mais rápido o portão, geralmente já trancado, do seu condomínio nos fundos da rua extensa.
Talvez um mês, mas desde que os observara pela primeira vez, os corredores, não conseguira mais considerar aquilo se não como um vício. Dependendo do horário, colecionava mais ou menos corpos em movimento. Alguns ela já conseguia catalogar: o moço da padaria, o vizinho de Talita, a moça do 402B... Que engraçado era contemplar cachorros esbaforidos acompanhando o ritmo de seus donos!
A praça, para uma São Paulo, era estranhamente arborizada. A arquitetura incomun, com subidas e descidas, quase um circuito, uma sãosilvestrezinha de fim de tarde para os que lá corriam, com certeza. Levava um nome doce de cantora, e parecia definitivamente satisfeita com isso.
A rua, uma qualquer, alguns buracos e carros estacionados. Compunha o espaço com uma calçada mal feita e três prédios idênticos. Contava ainda com uma padaria ao seu final, mas seu maior dilema por anos à fio era se decidir entre Vila Gomes e Butantã. Das escolhas que cabem a uma rua, sem dúvidas, essa era a mais difícil.
Já ela era uma moça comum, professora, alunos difíceis, vida difícil, cerveja sempre que podia, otimismo aceso, feminista e de esquerda. Nada demais naquela multidão do dia a dia, era consciente também disso.
Mas ela geralmente ria sozinha parada no farol, observando. Às vezes, perdia duas ou três vezes o direito de ir, observando. Um dia até pensou em fotografar, mas nenhuma fotografia seria capaz de captar tanto. Talvez um desenho em papel canson, ou nem isso. Nesse mesmo dia, sorriu satisfeita. Pensou nas tantas idas e vindas naquela rua, ora mais corridas ora mais despretensiosas. Conseguiu lembrar que, quando pela primeira vez naquele bairro, sentira uma vontade indecifrável de só ficar. E foi ficando tanto que até fincou, só não se sabe se um alicerce ou uma barraca iglu para 4 mas que, na verdade, só cabe 2, e olhe lá. De qualquer forma, continuaria ornando bem, como um eu-tu-ele do bem-me-quer: ela, rua, praça.

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