segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Rito de passagem

- Mas, sabe, eu finjo bastante. Finjo até fingir de vez em quando. Parece um vício. Na verdade, é um hábito. Isso, fingir é simplesmente um hábito. E hábito é muito mais que vício, claro, porque vício você ainda pode querer largar, hábito você nem percebe mais que faz, e aí chega lá nos seus noventa e tantos anos com o mesmo jeito de regar as plantas ou coçar a parte superior da orelha... São os hábitos. Fingir é o meu principal hábito. Ultimamente, tenho fingido felicidade. É bastante cômodo fingir felicidade, sabia? É, sim, as pessoas se convencem rápido da felicidade fingida, muito porque não sabem diferenciá-la da felicidade de fato. Nem eu saberia, eu acho. A felicidade de fato é difícil de ser percebida, é daquelas que ficam no cantinho do olho enquanto você sorri, ali quietinha, no meio das ruguinhas que se formam pelo estilhaçar da pele. Ah, e é de uma miudeza altiva. Parece que começa ali no olho mas vai tomando, assim, o corpo inteiro, que nem vontade de dançar, que quando dá ninguém segura. Costumo fingir compreensão também, mas isso eu faço pelos outros, para magoar menos. Quando fingimos compreensão, as coisas ficam mais tranquilas de serem levadas, sem conflitos e sem dramas. É que geralmente no embate os outros tendem a se armar contra você, e aí se você finge compreensão economiza uma série de palavras duras e intolerância alheia. Eu prefiro, mas essas coisas de preferência, gosto... tudo isso é muito pessoal, não é mesmo?! Eu também prefiro fingir experiência, que é pra ninguém ficar metendo bedelho nas minhas escolhas pra vida, isso também economiza bastante paciência. Aliás, paciência é uma coisa que eu nunca finjo, eu não a tenho mesmo, e acabou, está acabado. Agora, legal mesmo é fingir estar convencida, é meu preferido. Como as pessoas gostam de convencer... E eu contribuo, finjo mesmo. Só assim mesmo pra tanta gente impaciente me deixar em paz. Ah, também finjo paz, aquela que dizem que é interior e que está na moda dizer que se tem. Também chamam de leveza, alguns. Então, essa tal de leveza aí é uma das mais difíceis de se fingir, mas com o tempo dá pra acostumar. Afinal, se acostumar também não passa de um fingimento, o maior deles. Ninguém se acostuma de fato, apenas finge pra poder seguir. Ficar estagnado por não se acostumar pode ser prejudicial, aí todo mundo finge que se acostuma e vai em frente, e diz que o mundo não para, e que existem maiores preocupações, e que a vida é muito curta, e esse embalo de jargões que já cansou todo mundo, mas que esse todo e esse mundo também fingem que ainda não.

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