sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Dor dura nunca mais

Eu senti e sinto: violência não é só o golpe fatal de morte, mas também não fazê-lo ou postergá-lo.
Ainda me lembro como se fosse ontem ou hoje ou amanhã: me amarraram e nem eram 9 horas da noite. Fiquei moída por dentro, pareciam ter me arrancado o coração pela boca, pelo ouvido, pelos olhos - em partes líquidas. Cuspes, gritos, correntes na pele. Tudo chegava a mim como um estardalhaço, vários. Não havia condições de berro, de álibi, de réplica. Eu, ali, seminua e sendo alvejada por palavras e mãos que mais pareciam balas de metralhadora.
Tudo começara quando eu menos esperara, por acaso, fim de tarde, Campo Limpo. Eu com muitos e muitas, panfletos, vidas que passavam sem reclamar ou ousar olhar em nossos olhos. É triste quando se vê vidas assim sendo arrebatas sem nenhum sintoma de resistência. Talvez eu me sentisse um tanto superior, naquele momento e no seguinte, por ser capaz de ir contra a maré, persistir nos ideais e gritar em megafones contra o golpe e todos os ais. Mas tudo que havia de maior se perdeu às 8 horas e 35 minutos daquela noite de 6 de julho detestável.
Ali, eu não era mais ninguém além de quem eles queriam fazer o medo falar. Segui quieta, nem gemidos proferi. Como se fosse carne seca, morta, e talvez o fosse mesmo. Ou talvez tenha deixado emergir todas as poucas técnicas que pude aprender durante as tantas aulas de teatro que deixei de ir para manifestar em praça pública.
A tudo eu respondia com silêncio. E, como os olhos são capazes de dar informações que nem sempre conseguimos conter, permanecia de olhos fechados - apesar de profundamente querer ver a cara de cada um dos meus assassinos. Algo forte de proposital chegava aos meus ouvidos quando ouvia gritos de paredes cercadas ao lado. Certeza de que era também um método para me fazer falar, mas eu não falava. Quem me visse ali poderia jurar que eu havia nascido muda. Esperei que me tirassem os cabelos e fizessem algumas fissuras nos dedos das mãos. Havia um tonel de água e eu já sabia o que me esperava, mas permanecia forte.
Não há explicação para a força que surgia a cada nascer de sol que eu não via  daquela cela. De lá, não sabia de dias, meses ou anos, mas sabia que haveria um final - como seria?
Nem sei ainda se viva ou morta escrevo este relato - talvez um tanto das duas coisas. Ser e estar foram as maiores ousadias que cometi durante aquele tempo e antes.
E deles eu tento me esquecer todos os dias desde que não estou mais lá. Me sinto arrasada por querer esquecer, mas igualmente por não conseguir deixar de lembrar. Foi tudo golpe. E, dentre tantos, a mim faltou o de misericórdia.

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