Você sempre quis muito mais do que havia ali, prostrado ali, sedimentado ali. Porém, uma coragem nula habitava todo o cômodo da casa na qual você insistia em permanecer, escutando coisas que nunca quis e fazendo escolhas que nunca foram de fato suas. Esperava sempre pela hora certa que nunca havia chegado até então – e, mais tarde, naquele dia ainda, você entenderia que não havia isso de hora certa, lugar certo, homem certo. Tudo que brilhava à noite pela cidade lhe causava medo, desde as sirenes até os outdoors. Os meninos jogavam bola todos os dias de tardezinha no terreno vazio que existia no bairro. Às vezes, voltando do trabalho, você os acompanhava com os olhos enquanto caminhava para casa. Até sentia vontade de parar, sentar um tanto perto – mas não muito para não levar uma bolada na testa. Sempre gostou de futebol e entendia tão bem quanto todos os machos da casa, mas acostumou-se a silenciar os gols no quarto, porque ficava constrangida com as risadas sobre o seu time. Era firme quando se tratava de escolher o melhor para todos – irmãos, primos, mãe, padrasto, avós. Todos ali amontoados num mesmo terreno, e você num mesmo cômodo que metade deles, divididos apenas por uma cortina improvisada de lençol.
A única coisa legitimamente sua, que não se dividia, que não se revezava, era uma almofada antiga, de quando você ainda tinha cinco e seus irmãos nem eram nascidos. O desenho é da sailor moon, cujo nome você só aprendeu a escrever porque o tecido escrito lhe encarava dia e noite. E ainda encara, mais desbotado, sim, sem dúvidas, mas encara. O cabelo loiro dela, os olhos azuis dela: nada em você. E a verdade é que você nem se lembra de quando foi mesmo que assistiu ao desenho, e se assistiu – porque o que importa é de quem veio o presente. A almofada, mesmo agora desgastada, habitava, durante o dia, uma estante de plástico comprada nas lojas americanas que ocupava o canto do que se podia chamar de sala. Talvez ela tivesse mais lugar na casa do que você mesma. E tudo bem, porque você acreditava – depois esqueceu, mas até ali acreditava – que as pessoas não pertencem aos espaços, que são do mundo e assim devem permanecer sendo.
Nunca saiu da sua própria cidade, nem mesmo para fazer seu RG. Deu sorte que, quando precisou do documento, já existia um faça fácil próximo ao terminal de ônibus, para onde você conseguia ir até mesmo caminhando – não que fosse perto, mas geralmente se ia andando. Nasceu ali, cresceu ali, arranjou um emprego no supermercado do bairro vizinho. Todo dia acordava às seis para entrar às sete e sair às oito, só que da noite. Todo mundo lá não lhe dá menos de vinte, mas você tem no registro apenas dezoito. Queria fazer pedagogia, sem entender direito o que isso queria dizer, mas queria. Ouviu uma professora, uma vez, dizer que, para dar aula que nem ela, era necessário ser formada em pedagogia. Não esqueceu, na época até anotou no caderno sem capa alegre, apenas azul com lugar para pôr o nome.
Adiou muito procurar saber sobre faculdade e essas coisas que sua mãe dizia ser para gente mais velha, que você precisava trabalhar para ter experiência de vida. Aceitou facilmente a carteira assinada que lhe entregaram junto com um cartão de vale transporte branco, vermelho e com uns desenhos em verde atrás. Às vezes, ia andando para o serviço para poder levar seu irmão pequeno no shopping de ônibus no domingo. Ele tinha um fascínio esquisito por andar de ônibus que você nunca entendeu, mas também nunca deixou de alimentá-lo. Quando chegavam lá, as vitrines eram sempre as mesmas e ele nem ligava, pois já ansioso para pegar o ônibus de volta para casa – ele gostava era do caminho.
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